O BEM E O MAL
ZéMaria Medeiros
31.03.2007 para Hélio.
O ator veste
um figurino: de um lado representa o BEM do outro o MAL. Outra a idéia: o ator de neutro com dois bonecos
de luva, um em cada mão. Representam o BEM e o MAL
BEM - Sou o BEM, sou a virtude, a felicidade, o favor, o benefício, a
utilidade, a vantagem, o proveito. Sou a felicidade. Desde que me inventaram
domino o mundo. Graças a mim o Homem saiu das cavernas e construiu as
civilizações. Ergueu a grande cultura humana. Eu domino o mundo.
MAL - Espere aí! Antes que você ganhe todos os méritos deixe eu me
apresentar. Sou o MAL, sou o nocivo, o prejudicial, o opróbrio, a desonra. Sou
a calamidade, o tormento, a mágoa, o prejuízo. Sou a infelicidade.
Pensa o BEM
que domina o mundo, nunca ouvi tamanha asneira, quem efetivamente domina o
mundo sou eu. Euzinho aqui. Sim senhor, onde é que já se viu...
BEM – Você é a coisa ruim, por isso o mundo é tão violento, você fica
nas sombras tramando a morte de inocentes, levando criancinhas para o crime,
assustando as sociedades. Mas seus dias estão contados.
MAL – És mesmo muito engraçado. Só rindo. Hahahahahaaaaaa!!!! Faz-me
ficar de bom humor. Em teu nome BEM, os homens se matam, se infelicitam durante
toda a História, por isso somos gêmeos, a mesma parteira nos aparou das vaginas
de nossa mãe. Na mesma hora. No mesmo dia.
Aonde tu vais para
implantar a tua justiça, levas a guerra, a peste, a fome, a mortandade: todas
minhas irmãs. Depois da conquista, do banho de sangue... aparecem tuas irmãs,
riqueza, opulência e poder e com este álibi vais mandando...
Enquanto em minhas
mãos fica a desesperança desfilas cego pelos corredores dos poderosos. Portanto
o domínio do mundo é meu. Tu me fabricas e nada faço por ti.
BEM – É ai que eu entro. Eu posso te desarmar.
MAL – Não é fácil nos separar. Há um equilíbrio em tudo. Cada coisa se
liga a todas as outras. Dentro da esfera yin e yang se opõem e se misturam.
Veja! Certos acontecimentos parecem maus, mas não são, outros parecem bem e
trazem coisas terríveis. .
Retira o figurino, para assumir-se enquanto atorpersonagem. Ou. Retira
os bonecos de luva e se assume como atorpersonagem.
ATOR – Certas coisas nos deixam cismados. Coisas da gente. Coisas que
a gente sente. Opções diferentes. O Bem e o Mal. Já repararam? Certas coisas
são muito fáceis de dizer se são boas ou más. Gostar da noite. É bom ou ruim? Ter
vícios?... Vício eis uma palavra. Palavra pesada. Muitas pessoas só em ouvi-la
tremem; persignam-se. Vícios. Vício. Virtude. Não quero contrapor vício com
virtude. Afinal há viciados virtuosos. Virtuosos de vida e virtuosos de arte.
Viciados e não viciados. Em qualquer coisa há os que são e os que não. Até na
religião. Tem aqueles que cumprem os rituais freqüentam os cultos e festas e há
os que se viciam. Mas eles chamam isto de religião. Coisa boa. Boa como um
baseado ao por do sol. Quem conhece sabe, quem não conhece não precisa
conhecer. Droga, palavra que ao lado de Vício parecem a Legião do Mal. Gostaria
de levar-lhes por um caminho. Uma visão não paranoiada de algo que nos apavora.
A Todos! Eu também. A violência. Quero focar com vocês um personagem desta
teratologia: o usuário, o consumidor, o viciado. O cidadão que usa alguma
droga. Ele não é violento. È participativo. Trabalha e atua nos diversos ramos
do conhecimento humano. E se não se deixar destruir pela droga a usará pela
vida inteira, ou até que um chek up médico recomende moderação ou abstenção.
Vício é vício. Comércio é comércio. Taí uma palavra leve. Comércio. Em nome do
comércio se fizeram todas as guerras, se quebraram todas as regras, se
cometeram todos os genocídios. Todo mundo quer ser comerciante. Os negócios
movimentam o mundo. E nem todo negócio legal é puro e benemérito como o
comércio de cartões de natal. Tem negócio legal, legalizado, cabeludo,
cabeludíssimo, vide o comércio de armas, arma de aço, arma nuclear, arma
biológica. Tudo legal. No papel. Outros não menos cabeludos, feitos à luz do
dia, mostrados na imprensa, em que interesses corporativos resvalam no crime
para que somas bilionárias trafeguem para seus cofres; quem acompanhou a venda
das estatais no Brasil sabe do que estou falando. Mas vamos juntar as palavras:
Droga, Vício e Comércio. Aí temos uma união explosiva. A sociedade mantém o
comércio do vício, que declara ser ilegal, e tolera o vício: é impossível não
tolerar. São os paraísos de Boudelaire, Michelangelo, João Ubaldo, Fernando
Pessoa e de pessoas próximas, que as amo, com quem divido meus dias e, digamos
assim, meus vícios. Vejam que paradoxo, que contra-senso, a Sociedade proíbe o
tráfico do vício que Ela mantém.
Encontro aí a eterna
polêmica do Bem e do Mal. Estes dois ícones do conhecimento digladiam-se,
confrontam-se. Todas as vezes que nos achamos completamente do Bem estamos
aptos a praticar o Mal. O equilíbrio, a humildade em nos aceitar nem tanto Bem
e Mal evita-nos o Mal. Pronto gente: filosofei. Mas saiamos do vício, falei
dele primeiro pelo que evoca de violência o combate ao comércio. Pelo que se
mostra a incapacidade de todos os Estados e Povos em combater o comércio de
algo que Eles mesmos consomem. Mas como já disse: não fiquemos só nos vícios.
O Bem e o Mal
adentram a arena para sua refrega... (idéia de Coliseu: os gladiadores do B e
do M avançam) Do lado do Bem os Exércitos Plurinacionais, do lado do Mal todos
os Insurgentes. Normalmente chamados de terroristas.
(aviãozinho de
brinquedo na mão, maquete de cidade. O texto a seguir deve ser cena) O Exército
Americano sobrevoa Bagdá e despeja uma bomba sobre um hospital, mata dezenas de
enfermos, destrói casas no entorno com famílias inteira. Vi um pai chorar a
perda da esposa e dos filhos. (segunda cena)
A Al Kaeda sobrevoa os céus de Nova York com dois boeings e joga-os sobre as torres gêmeas. Matou muita gente! Vi
um pai chorar sua família. A bomba do Exército chama-se Ação Militar. O Boeing
da Al Kaeda de Terrorismo.
Ação Militar o Bem.
Terrorismo o Mal.
Bem. Mal. Terrorismo.
Ação Militar. Alguém se arrisca dizer qual é o Bem? Qual é o Mal? É muito
confortável ficar na poltrona. Ouvindo e Vendo as Notícias. O Império e o
Contra-Império. O encontro cultural continua sangrento desde as cavernas.
Oriente e Ocidente. Árabe. Palestino. Israelita. Inglês. Americano. A guerra é
uma ação política. Alguém vai deter alguém?
A Ordem e a Desordem.
Tudo está junto. É impossível separar o Bem do Mal.
Alguém se arrisca?
Grosseiramente é fácil separar. Isto é Bom. Isto é Mal. (A mamãe diz pro filho)
Menino não coma doce que faz mal. (A Igreja diz pro crente) Não faça sexo que é
pecado. Pecado?!!! O legislador celeste criou a castidade. Palavra tão elástica
quanto um himen complacente. O religioso repete as suas verdades com a certeza
de uma criança, mesmo que beire a casa dos 70. Tem coisa mais cheia de bem e
mal do que a sexualidade? Se você é hetero e cumpre certos formalismos, ritos,
tudo bem. Agora se é homo, aí a coisa pega. Se é uma bixa, uma traveca, uma
sapata aí os óculos da sociedade miram todas suas setas para coibir, reprimir,
punir. Vigiar e Punir. Leviatã está pronto para o bote. E o amor? O que é o amor? Em mim alguns ferem outros são suaves nuvens
ornando a Luz. Bons? Maus? Maus são os que terminam em pancadaria, assassinato?
Deu no jornal (cena) que um Pedro vindo a discutir com a mulher esfaqueou-lhe
dezenas de vezes e tendo as crianças chorado, matou-lhes uma a uma. Eram três.
A porretada com uma mão de pilão atingiu-lhes a cabeça. Matou todos. O ódio
aflorou. Ódio e Amor vivem dentro do Animal. É sempre bom lembrarmos: somos
Animal. Do reino Animal. 3% diferentes dos macacos.
Vamos fazer uma
brincadeira? Um exercício de imaginação? Retiremos o Ser Humano do planeta. Só
as forças naturais agindo. Desaparecem o Bem e o Mal. Árvores e animais
caminham para um forçoso equilíbrio. Tudo tende ao equilíbrio. O Ser Humano é o
desequilíbrio, recusa-se à mesmice da Natureza. Quer ser diferente Dela. Ele se
quer o recorte no eterno contínuo.
(segura um macaco marionete ou figurino e
maquiagem. Evolui. Som de tambores.)
Fala do macaco:
“Freqüentemente acontece que a cabeça
científica pertence a um corpo de macaco e uma inteligência perspicaz e
excepcional a uma alma vulgar. Não é raro esse caso entre médicos e
fisiologistas da moral. Por toda parte onde haja alguém que fale do homem sem
acrimônia, mas sim com uma espécie de candura, como de um ventre dotado de duas
espécies de necessidades e de uma cabeça apenas com uma necessidade. De alguém
que sempre não veja, não procure e não queira
ver senão a fome, o instinto sexual e a vaidade, como se estas fossem as molas
essenciais e únicas das ações humanas. Resumindo, onde se fale “mal” do homem –
e não maldosamente – o amante do
conhecimento deve escutar atentamente e com cuidado, os seus ouvidos devem
estar em toda parte onde se fala sem indignação. Eis que o homem indignado,
aquele que dilacera a sua carne com os seus próprios dentes – ou, em seu lugar,
ao mundo, ou a Deus, ou à sociedade -, esse pode estar mais alto do ponto de
vista moral, que o sátiro risonho e auto-satisfeito, mas em qualquer sentido
ele será o caso mais vulgar, mais indiferente e menos instrutivo. Além do mais
ninguém mente tanto quanto o
indignado”. Assim falou Nietchie em “para além do bem e do mal”.
Despe-se: é o ator.
Gerô
morreu. Mataram Gero. Quem mataria Gero? Por que?, mataram Gerô, foi a polícia,
tão dizendo que confundiram ele com um assaltante.
8:00. Pedra funerária atrás do
hospital Português. Ta lá o corpo estendido. É grave o rosto do morto. Muitos
vieram solidarizar-se em nossa dor. Soldar-se em dor. Quanto mais
chegavam, quanto mais versões ouvíamos, mais se confirmava a grandeza da
barbárie que se cometera contra o companheiro. Porrada. Porrada líquida e
certa. Porrada de quebrar costelas. Porrada de perfurar os rins. Porrada de
quebrar mãos. Quebraram-lhe o corpo
inteiro. Que queriam quebrar-lhe os seus algozes? Conseguiram? Que insanidade
guiou os seus executores? Por que esta explosão de ódio? De raiva? De gana
assassina? Que fez-lhes ele? Nada.
Aquele homem franzino, de chapéu
de couro, com sua pasta na mão, de sandálias japonesas, suado, vindo de alguma
batalha, que a vida nunca lhe deu mole, lutando para se manter com o nariz
acima da merda, vendendo os seus cordéis, batalhando o seu cd., organizando o
seu próximo show, nunca lhes havia feito nada. Aquele homem, que os policiais
disseram confundir com um marginal, era um homem politizado. Conhecia os seus
direitos. Que pedissem-lhe os documentos. Que examinassem sua pasta, veriam
cordéis, cd., papéis. Algemaram-lhe. Onde estava o seu direito de ir e
vir. Olha aí maluco eu sou o Gerô, deve
ter dito, eu tenho direitos.
Aquilo que no início parecia-lhe
absurdo tomou a dimensão do horror com o encarceramento. Onde estava o seu
direito de expressar-se. Que lhe valiam os mil discursos que proferira, as dez
mil reuniões que participara, a sua liberdade de expressão era uma porrada no
corpo. Aquele homem era politizado, do PDT, conhecia os salões do poder, onde
na condição de artista compositor, cordelista, participara de lutas e
banquetes. Sabia que é direito de todos ser considerado inocente até prova em
contrário, e no caso dele não havia prova em contrário. O que
parecia-lhe humilhante e absurdo tornou-se para ele insustentável, inaceitável.
Brotou de toda sua História o insurgente, o insubmisso, o guerrilheiro, o
rebelde: o quê apesar de toda situação ser desfavorável luta. Ele lutou.
Algemado. Pisoteado. Caceteteado. Ele lutou. Lutou bravamente para ser
reconhecido pelo Estado como cidadão. Como Ser de Direitos. Que viram seus
carrascos? Viram um negro pobre se achando. Logo ele tinha que entender que quem
manda é a farda e arma. A violência que esta combinação pode fazer é trágica.
Foi discriminado por tudo que nos desprotege e lutou, lutou furiosamente com a
língua, a cada porrada recebida uma blasfêmia, um insulto, o que só
acrescentava ódio e furor aos seus assassinos. Bando de maluco eu vou morrer,
mas vocês vão se fuder, eu sou o Gerô. Quebraram-lhe o corpo, não o espírito.
Depois do crime a tentativa de ocultar. Misturar provas. Confundir. Estamos
atentos.
Por toda sua
luta contra o racismo e o preconceito, e principalmente pelo martírio do último
ato de sua vida Gerô deve ser reverenciado como um dos nossos heróis. (silêncio)
O Bem e o Mal.
A morte e o crime.
Onde ficam os
limites? O equilíbrio? Como manter a tensão no ponto ótimo? Talvez seja esta a
nossa pergunta, nossa interrogação? Sabemos que somos feras. Que ali no gogó,
em algum canto recôndito de nosso Eu habita uma fera. Uma fera controlada pelo
chicote cultural repousa na caverna. Ela só quer viver. Ela não sabe o que é o
Bem, o que é o Mal.
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